sábado, 15 de novembro de 2014

Lendo cascas de árvores e toalhas sujas - como conheci a meditação





Em frente ao mar, estávamos, meu pai e eu, sentados de pernas cruzadas, olhos fechados e em silêncio. Eu escutava o barulho das ondas quebrando e volta e meia sentia a água gelada tocando minhas pernas. Meu pai meditava e eu apenas o imitava, não sabia direito o que estava fazendo, nunca tinha recebido uma instrução real sobre o processo, apenas fechava os olhos e ficava ouvindo o mar. Era algo simples, mas era bom. Devia ter por volta de quatro anos e nessa idade qualquer coisa que seja feita com o seu pai é o máximo. Compartilhar um momento, uma prática, eu me sentia importante, quase um adulto. 

E uma onda veio e me levou. Não metaforicamente, mas de forma real e inelutável, não tive tempo nem de gritar. Ainda consegui, em meio ao caldo que tomava, ver meu pai sentado e de olhos fechados, sem ter a menor ideia do que me acontecia. Fiquei apavorado, tentei voltar para a superfície, mas a água me puxava. Não sei ao certo como se deu, mas um surfista me puxou pelo braço e me levou de volta para a areia. Lembro da cara assustada do meu pai, do gosto da água salgada e de me sentir grato ao anônimo que me salvou.

Essa foi uma das minhas primeiras experiências em meditação. Não sei como, mas ao que tudo indica, não me traumatizei. 

Meu pai era artista plástico e morávamos em uma área grande com a natureza em volta  razoavelmente preservada, o estúdio dele ficava uns dez minutos de caminhada distante da nossa casa. Muitas vezes, minha mãe me mandava levar laranjas para ele. Ao chegar lá no estúdio, ele cortava a laranja em quatro pedaços e a comíamos juntos. 

Na época, a maior parte dos trabalhos do meu pai era feita com bico de pena. Podia levar meses ou mesmo mais de um ano para que um quadro ficasse pronto. Cada tijolo de uma construção, cada folha de uma árvore eram desenhados individualmente. Apoiado nas leituras zen budistas, ele tinha a paciência e a concentração como as bases do processo artístico. 

Crianças aprendem a olhar para nuvens e enxergar coelhinhos, cachorros, etc Eu dominava essa arte e também sabia “ler” borra de café como se fosse um velho mago, não enxergava o futuro, apenas via formas diversas no fundo da xícara.  Sabia ainda ler cascas de árvores, toalhas sujas de comida e toda e qualquer mancha que aparecesse pela frente. Tinha aprendido que as coisas mais belas estavam nos detalhes e que formas e fábulas se escondiam na sujeira, nas árvores e nas nuvens.

Meu pai me ensinou todos esses segredos e eu o via como um alquimista mais do que como um artista. Ensinou ainda o valor do silêncio. Dizia-me para ficar sentado de pernas cruzadas e olhos fechados ouvindo o vento ou o mar. 

Anos se passaram antes do meu reencontro com a meditação após a morte dele. Esses escritos são apenas uma tentativa de organização e rememoração de como tudo isso se deu, na esperança de aumentar minha compreensão sobre o meu próprio caminho. Hoje, quando sento ao lado da mulher que amo para meditar, sou o mesmo garoto que foi levado pelo mar de Ipanema e que criava lendas a partir de manchas numa xícara. Mas sou também outra pessoa e ao escrever essas linhas senti como se estivesse entrando em contato com vidas passadas. Enquanto escrevo o passado, desenho o futuro em meio a manchas de memórias e emoções presentes.

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